sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

"Do outro lado da ilha"

Lançado em 1984, Tchau tem esta capa desde 2003. Reprodução do quadro A solitária, de Edvard Munch, a imagem contém tantas outras, que me facilitou a vida na hora de escrever minha tese. Porque eu tinha a intenção de falar de cada um dos livros publicados por Lygia, ou melhor, meu desafio era recriar a personagem da autora a partir da minha leitura da obra; eu procurava o rosto da mulher que mora nos livros e deparei com ela de costas, olhando pro mar.
Como olha a protagonista e narradora de um dos contos do livro, “A troca e a tarefa”. Adolescente, gosta de um vizinho e, por ene motivos, morre de inveja da irmã mais velha. Para seu desespero, é justo do tal vizinho que a irmã fica noiva. Ela ainda sofre a humilhação de dividir a festa de seus quinze anos com o noivado:
Já tinha ficado de noite, a festa estava animada, todo mundo dançando, até o meu pai, tão sério sempre. Corri pro quarto. Me tranquei. Queria matar a vontade de chorar, de gritar, de morrer. Nem acendi a luz. E nem deu tempo de correr pra cama: o choro saiu ali mesmo, de cara encostada na porta; o grito saiu lá mesmo, e a música abafou; pulei a janela e corri pro mar.
Lá na praia tinha pouca estrela, barulho manso de onda e a lua era quarto minguante. Tirei o sapato e fui pela areia. Já ia entrando no mar. Mas senti medo. Dei pra trás. Me deitei na areia e fiquei lá tanto tempo que acabei dormindo.[1]
Então, com a ideia de “transformar” a dor, não se afoga nela; ao contrário, atravessa as águas revoltas até outro espaço, de onde se ergue mulher e escritora. O título do primeiro romance é emblemático Do outro lado da ilha:
Fiz que nem na poesia: transformei o Omar no mar. Um mar tão bom de olhar. E inventei uma ilha pra botar nele: uma ilha pra eu ir lá morar: de praia de areia fininha, onde o mar chegava a toda hora. E fui inventando uma porção de coisas pra acontecer na ilha.[2]
Tchau é o único livro de contos de Lygia, conhecida pela habilidade em criar histórias dentro de histórias. Desta vez, ela caprichou na força do impacto de uma única trama. Cada narrativa trata de um conflito que cresce cena a cena, até o clímax. Aliás, a tensão é crescente também no limite de muitas cenas.
E o intervalo é o mar.
Enquanto nós, cariocas, procuramos o mar para conversar em momentos difíceis, os quatro contos recorrem a ele como um espaço de elaboração, capaz de encaminhar o desfecho.

O livro é pra quantos anos? Saiba na página ao lado!

a Na Caixa amarela, uma dica de leitura da aluna Vanessa Souza, em aula na Estação das Letras, há um mês a



[1] BOJUNGA, Lygia. Tchau. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2005. p. 95.
[2] Idem, Ibidem. p. 98.


sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Era uma vez uma chave

            A casa da madrinha (1978) é a história de Alexandre, menino que mora numa favela em Copacabana e precisa deixar de estudar para trabalhar:
Comecei vendendo biscoito, eu era muito pequeno, tinha que carregar coisa leve. Cresci um pouco e passei pra amendoim. Já pesava mais pra carregar aquela lata com fogareiro. Tirou o fogareiro, já viu: amendoim frio ninguém compra. Cresci mais e passei pra sorvete. Aí só compravam se tava bem frio. E sabe como é que é, não é? Andando na areia, com aquele calor desgraçado, a gente tem que carregar um bocado de gelo na caixa pro sorvete ficar sempre gelado. Um peso que eu vou te contar. Mas agora tem tanta gente vendendo sorvete que eu ando cinco, seis vezes a praia todinha e não vendo quase nada. Primeiro era mais Copacabana que tinha esse monte de viração. Aí eu dei pra passar fim de semana em Ipanema. Mas Ipanema também entupiu. E então eu disse lá em casa: “a vida na praia tá muito apertada, acho que vou viajar”.
Para escapar de sua vida difícil, Alexandre sai da cidade à procura da casa de sua madrinha, que não sabe onde é. Aliás, nem conhece a madrinha de quem o irmão Augusto lhe falou, justamente numa noite em que sentia fome. Na viagem, faz amizade com a menina Vera. Brincando juntos, no sítio dela, chegam à “casa”. A “madrinha” não está mas, como Augusto dissera, deixara uma chave esperando pelo afilhado, dentro de uma flor pregada na porta. Na casa, sob o olhar admirado da amiga, todos os desejos de Alexandre são realizados. Mas Vera precisa ir embora e ele a leva de volta. No sítio dela, junta suas coisas para seguir viagem. Quando abre a mala, encontra a mesma chave: “Que legal! Agora vou viajar com a chave da casa no bolso; não vou mais ter problema nenhum!”, diz.
Não?
Parece que Lygia quis transmitir ao leitor o sentimento de poder abrir as portas da vida. O livro foi lançado nos anos 1970, quando a vida nos morros cariocas ainda não sofria tantas ameaças. Havia uma chave imaginada, uma chave a ser buscada. Esta chave, hoje, é apenas ficção? (Duas ou três vezes por semana, tenho caminhado do Catete à Lapa. Passo por muitas crianças drogadas, imundas, eu me desvio delas, me culpo.)

                                 Leia mais sobre o livro na página ao lado!



sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Rio de sonho

Tem um mês que não consigo acesso ao site da Casa Lygia Bojunga. Meu computador não vai mais lá. Estranho, pois pedi para duas pessoas fazerem o teste de seus computadores, e acessaram o site normalmente. Uma chegou a testar várias páginas e encontrou tudo normal. Estranho ainda é o fato de eu me negar a testar o acesso de outro computador. Porque desde então tento me lembrar de uma foto que tem lá, de Lygia aos oito anos. Uma foto onde está vestida para o carnaval, com legenda contando que a fantasia foi criação dela. Queria ver esta foto para inspirar esta crônica. Talvez, porém, segundo as forças ocultas da tecnologia, eu já tenha visto o necessário: sou provavelmente quem mais acessou o endereço. Chega então de adiar, escrevo.
Aos oito anos, a futura escritora era habitante recente do Rio de Janeiro. Mudara-se da gelada Pelotas-RS para a efervescente Copacabana. Em O Rio e eu (1999), aliás, Lygia se refere a um pedaço da vida no Sul. Uma (inventada?) passadeira lhe fala maravilhas sobre o Rio. A descrição da mulher é de tal forma atraente que a menina chega a duvidar que seja verdade. Pouco tempo depois, ainda segundo o mesmo livro, é no sonho de cidade que Lygia passa a morar. Copacabana chegava aos anos 1940, e imagino o que era aquela praia.
Então, na foto que já vi bastante, a menina que se descobria carioca se cobria de uma fantasia própria. Deve ter sido uma folia e tanto. Bem de acordo com a estreia literária da autora, trinta anos depois. Os colegas (1972) é uma trama carioca, com cheiro de praia e alegria de carnaval:
Um cortando e outro costurando os pedaços de pano, a vela do barco e os trapos todos reunidos, pouco a pouco vão aprontando os paletós e as calças de palhaço. E em cada paletó que fica pronto, Latinha vai colando os botões: as bolas de gude e as de pingue-pongue também. Cara-de-pau espalha as margaridas do buquê, que Flor vai salpicando e prendendo nas fantasias com pontarecos ligeiros. Voz de Cristal e Virinha vão fabricando as cinco cartolinhas com as caixas de sapatos vazias e a cartolina conseguida. Enquanto um corta, o outro cola. E depois, cada um da turma pinta na cartola uma coisa que vem na cabeça: um sol, uma saudade, uma casa, uma onda, um avião.[1]
Em 1971, o  Instituto Nacional do Livro realizou um concurso em busca de novos autores de livros para crianças. Os colegas venceu, revelando Lygia vestida de escritora. Uma fantasia relacionada ao trabalho com as mãos, como se sabe a partir de Livro, um encontro (1988). Esta é a primeira narrativa autobiográfica da autora e é também a primeira em que ela se diz “artesã da escrita”. Eis uma fantasia poderosa, origem de outras tantas.               
                                         a LEIA AGORA A PÁGINA AO LADO! a


[1] NUNES, Lygia Bojunga. Os colegas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 27.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Rio de mansão e barraco


Depois de experimentar memórias e livros voltados à reflexão sobre a literatura, em 1999 Lygia volta à narrativa tradicional com A cama. Narrando em terceira pessoa e com muitos diálogos, entrelaça as vidas de duas famílias e mais alguns personagens através da história de uma cama. O livro é classificado pela editora como “romance brasileiro”, mas talvez seja um romance juvenil. O ponto de vista predominante é o de Petúnia, 11 anos, que tem aliás muito da Raquel, de A bolsa amarela (1976). Além disso, ganhou prêmios na categoria juvenil. Seja como for, ler A cama é ver a cidade do Rio de Janeiro em belas cenas. Inspirado numa peça de teleteatro escrita por Lygia nos tempos da tevê ao vivo, é até mesmo um texto simples de se adaptar para o cinema.
O primeiro capítulo é quase todo em diálogo, entre um casal que vive numa pequena casa, no subúrbio do Rio de Janeiro, em Rocha Miranda, e tem um filho de 14 anos, Tobias. O segundo capítulo é também o diálogo entre Petúnia e a mãe, no apartamento de dois quartos, em Copacabana. No terceiro, as famílias se encontram na favela do Rato Molhado. Em meio a um cenário de miséria e abandono, a narrativa sugere um futuro romance entre Petúnia e Tobias. O segundo encontro desses dois se dá no Jardim Botânico (o jardim mesmo, que fica no bairro homônimo). Além desses quatro lugares, que dão uma ideia da diversidade de paisagens e modos de vida que se tem no Rio, o enredo vai ainda ao Grajaú, onde mora um personagem sensacional.
                Américo é um senhor de idade, rico e solitário, triste, porém cheio de humor. Esta é outra qualidade que se destaca do texto: os problemas da cidade são mostrados, a violência e a miséria em contraste com a beleza natural, o contraste entre as classes sociais, mas o alívio cômico é frequente. Américo, Elvira (mãe de Petúnia) e o genro dela (namorado da filha mais velha) formam um trio para levar qualquer leitor às gargalhadas. Pode dar mesmo um filme e tanto. Para completar, a história da cama que se desloca pela cidade tem um toque sobrenatural: quem pensa em vendê-la é amaldiçoado.

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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Reler a paisagem

Há mais de dez anos frequento o bairro de Santa Teresa, mas só peguei o bonde meia dúzia de vezes. Meu problema era, uma vez sentada, não ter controle sobre a quantidade de gente que entrava ou se pendurava. A superlotação, as ruas estreitas, veículos na direção contrária, carros nas calçadas, enfim... muitas variáveis para um só motorneiro administrar. Além da insegurança evidente, a irregularidade nos intervalos entre um e outro, forçando quem prefere o bonde a pegar um dos micro-ônibus de trajetos semelhantes. Ao decidir comprar um apartamento, aliás, lamentei que o bonde não funcionasse. É o transporte ideal para aqueles altos, onde eu gostaria de morar, se pudesse contar com ele.
Como contava a narradora da novela Paisagem, de Lygia Bojunga. Tendo saído de Londres para visitar Lourenço em Santa Teresa, ela o convida para jantar, propondo que peguem o bonde.  O detalhe é que não come nada pelo menos desde as três da tarde e, pelo jeito, já passa das oito da noite. Sem mencionar o tamanho da fome, nem o intervalo entre o convite e a subida ao bonde, a narrativa passa à descrição do caminho. Exibe assim uma imagem idealizada do bonde; não importa se é noite ou se houve um temporal:

Descemos Santa Teresa num bonde amarelo; de olho no Rio e de ventinho na cara. França. Vista Alegre. Guimarães. Curvelo. Os Arcos.
                        Ih, Lourenço, gostei demais desse passeio. Valeu.[1]

Lembrei desta passagem num sábado à tarde, quando ia do Largo do França ao Largo do Guimarães. Dessa vez, fiquei tentada a pegar o bonde, pois começava a chover. Mas deixei-o passar direto e continuei a pé. No sábado seguinte, houve o acidente perto do Largo do Curvelo. Dia 27 de agosto, também à tarde, cinco pessoas morreram e 57 ficaram feridas. Quis reler Paisagem.
Sim, a imagem do bonde é idealizada, mas não a da cidade. Lançada em 1992, a novela põe ênfase no contraste entre a beleza natural do Rio de Janeiro e a multiplicação de barracos:

Abri a janela. O céu já ia clareando. Entrou um ar gostoso, trazendo um cheiro de quintal, de jasmim. Me debrucei e fiquei lá um tempão vendo a vista espetacular. Meu olho foi traçando os mil caminhos que eu andei no Rio, os bairros onde eu morei e estudei, onde eu namorei e trabalhei. Volta e meia o meu olho tropeçava numa outra favela que tinha tomado conta de um morro, até quando iam deixar tanto brasileiro vivendo assim? O meu olho fugia pro mar. Mas depois voltava, e lá ia indo de novo nos caminhos que eu tinha andado, e que fizeram do Rio o meu chão verdadeiro.[2]

Adiante, sobre o que observa da mesma janela, a narradora acrescenta: “A noite apagava as feridas, a injustiça de cada favela virava um salpico de luz.”[3]
Uma das camadas do texto é, portanto, o registro de um olhar sobre o Rio de Janeiro. Registro que se desdobra por cinco outras obras da autora – Os colegas (1971), A casa da madrinha (1978), Tchau (1984), A cama (1999) e O Rio e eu (1999). Um convite incessante para reler a paisagem.

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[1] BOJUNGA, Lygia. Paisagem. Rio de Janeiro: Agir, 1992. p. 47.
[2] Id. Ibid. p. 25.
[3] Id. Ibid. p.46.