sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O maior silêncio


Em Nós três (1987), Rafaela tem a mesma idade dos protagonistas de Meu amigo pintor e Corda bamba,[1] mas sua história não tem as características do gênero infantojuvenil. É encantada por Davi, homem-feito, que conhece enquanto passeia pela praia deserta. Ele se aproxima no instante em que ela se abaixa para colher a flor azul, parte do folclore do lugar. Faz poucos dias, o pescador contou que a Morte adora essa flor, que guarda dentro dela o Amor: “Contou que a Morte andava a cavalo e que ela gostava de galopar. Aonde ela passava um vento grande levantava, e se tinha flor no caminho a pata grande amassava.”[2]
            As férias começavam. No fim, a lenda se confirma: Davi é assassinado pela namorada Mariana, que hospeda Rafaela. Única testemunha do crime, a menina fica a noite toda sozinha na casa, isolada na praia, enquanto a mulher sai de barco para levar  o corpo ao fundo do mar. Então, a dor de Rafaela é elaborada no silêncio do quarto trancado. Pela primeira vez, a menina percebe uma chave na porta e se tranca.
O final permite ao menos duas leituras: pode ser que Mariana acabe se matando mesmo, pode ser que Rafaela deseje que seja assim. O fato é que Lygia introduz ainda o suicídio na história que, lançada e premiada como infantojuvenil, já tratava de um crime passional testemunhado por uma menina – que tinha um sentimento especial pela vítima.
            Uma das cenas faz uma crítica da solidão na cidade contemporânea, que fica muito engraçada, apesar do peso do enredo. Depois que Mariana levou o corpo de Davi embora, paira o maior silêncio entre ela e a menina. Então, o pai desta chega de surpresa para buscá-la e nem repara em nada. Morador do Rio de Janeiro, fala sem parar, totalmente agitado, manda Rafaela reunir suas coisas rapidamente, enquanto dá um mergulho, não sem antes se exercitar num aquecimento. A menina aproveita: vai embora sem quebrar o silêncio que, na casa da mulher, não vai parar de crescer.
Na opinião de Laura Sandroni, é
Uma história triste, que foge ao rótulo ´infantil´ pela temática abordada e principalmente pela visão madura do relacionamento humano. Um texto que reafirma as qualidades literárias da autora e a coloca lado a lado com a produção artística na qual os valores estéticos preponderam.[3]

Sim. Sem dúvida Nós três não deveria ser catalogado como infantojuvenil. Tanto que, 18 anos depois do lançamento pela Agir, a editora da autora classificou a narrativa como romance brasileiro. 
Considero, porém, que uma criança ou adolescente pode ler Nós três, como pode ler muitos outros livros que não se enquadram na categoria infantojuvenil. Um leitor da faixa etária da protagonista estará como ela para a situação que vive: terá que elaborar de um jeito muito próprio o enredo. Do mesmo modo que a menina volta de férias modificada pela experiência que teve, pode ser que um leitor criança ou adolescente seja modificado pelo texto. Cada um por si, sozinho, recriando sua história dentro de um quarto trancado.

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[1 Cláudio tem onze anos e Maria dez. A idade de Rafaela não é expressa, mas se presume quando ela se refere ao namorado de uma amiga – o menino estuda na 4a série A.
[2] Nós três. Rio de Janeiro: Agir, 1987. p. 10
[3] SANDRONI, Laura. Ao longo do caminho. Seleção de resenhas publicadas no jornal O Globo, 1975-2002. São Paulo: Moderna, 2003. p. 206

sábado, 11 de fevereiro de 2012

O diário de Cláudio

Um livro para crianças tem, como ponto de partida, o suicídio de um personagem adulto. Numa história catalogada como infantojuvenil, uma criança faz o relato do seu luto. Uma obra dedicada às crianças traz, entre outras histórias, a de um casal separado pela ditadura militar no Brasil. Em O meu amigo pintor, Lygia olha a criança nos olhos e conta com todas as letras a história de Cláudio, onze anos. Ele perdeu o melhor amigo, um vizinho já adulto, que se matou. Assim, o leitor compartilha da perplexidade do personagem. A morte, o suicídio, invade seu quotidiano de forma inexorável.
O livro é feito um diário, escrito nas três semanas seguintes à morte do vizinho, que era pintor. Cláudio começa contando da vontade que teve de ir até o apartamento de cima, dizer: “Saquei o que você me disse naquele dia! estou entendendo demais esse preto; te juro que me deu um estalo e eu estou entendendo o jeito que esse amarelo pegou.”[1] Mas explica por que não pôde visitar o amigo: “Hoje está fazendo três dias que ele morreu”.[2] 
Não lhe dizem que foi suicídio. Ouvindo seus pais conversarem sobre o caso, Cláudio nota que lhe escondem a verdade. Pergunta o que aconteceu. Como resposta, recebe um abraço da mãe, que diz para ele não pensar nisso:
- Na sua idade, a gente tem que pensar na vida e não na morte. Você tem outros amigos…
     - Que eu não gosto feito eu gostava dele! [3]

            Dias depois, tenta dividir sua tristeza com um colega da escola: “Tudo começou porque eu estava desenhando um coração; só que em vez do coração ser vermelho, ele era marrom; e em vez de ser feito coração que a gente conhece, ele era todo achatado assim pro lado e acabava de repente, deixando a gente sem saber que fim que ele levava.”[4] Então, o colega diz que coração tem que ser vermelho, pontudo embaixo e com seta. Enquanto diz, procura corrigir o desenho a seu modo. No diário de Cláudio, o desabafo: “Eu acho que vai custar muito tempo pra arranjar um amigo que saque também esse negócio de esborrachar e amarronzar coração”.[5]
            Pela escrita do diário (e também pela metáfora desse desenho), Lygia trabalha com a criação de um espaço interno e individual. O texto e o desenho funcionam como o ovo da Angélica e a casa de Porto (Angélica, 1975), a bolsa da Raquel (A bolsa amarela, 1976), a casa da madrinha (A casa da madrinha, 1978), a corda de Maria (Corda bamba, 1979), a rua aonde Vítor chega, atravessando o sofá (O sofá estampado, 1980), o quarto onde Rafaela se tranca (Nós três, 1987) e o apartamento de Carolina (Retratos de Carolina, 2002). Na solidão que descobre, Cláudio aprende a conviver com perguntas, imaginando que um dia será possível respondê-las:
     Agora, quando eu penso no meu Amigo (e eu continuo pensando tanto!) eu penso nele inteiro, quer dizer: cachimbo, tinta, por quê? Gamão, flor que ele gostava, morte de propósito, por quê? Relógio batendo, amarelo, por quê, blusão verde: tudo bem junto e misturado.   
     E comecei a gostar de pensar assim.
     Acho até que se eu continuo gostando de cada por quê que aparece, eu acabo entendendo um por um.[6]

« Leia mais sobre o livro nas páginas A mulher que mora nos livros  e Caixa amarela


[1] O meu amigo pintor. Rio de Janeiro: Agir, 1987.p. 8
[2] Ibid. p. 8
[3] Ibid. p. 19
[4] Ibid. p. 30
[5] Ibid. p. 31
[6] Ibid. p. 51