sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Era uma vez uma chave

            A casa da madrinha (1978) é a história de Alexandre, menino que mora numa favela em Copacabana e precisa deixar de estudar para trabalhar:
Comecei vendendo biscoito, eu era muito pequeno, tinha que carregar coisa leve. Cresci um pouco e passei pra amendoim. Já pesava mais pra carregar aquela lata com fogareiro. Tirou o fogareiro, já viu: amendoim frio ninguém compra. Cresci mais e passei pra sorvete. Aí só compravam se tava bem frio. E sabe como é que é, não é? Andando na areia, com aquele calor desgraçado, a gente tem que carregar um bocado de gelo na caixa pro sorvete ficar sempre gelado. Um peso que eu vou te contar. Mas agora tem tanta gente vendendo sorvete que eu ando cinco, seis vezes a praia todinha e não vendo quase nada. Primeiro era mais Copacabana que tinha esse monte de viração. Aí eu dei pra passar fim de semana em Ipanema. Mas Ipanema também entupiu. E então eu disse lá em casa: “a vida na praia tá muito apertada, acho que vou viajar”.
Para escapar de sua vida difícil, Alexandre sai da cidade à procura da casa de sua madrinha, que não sabe onde é. Aliás, nem conhece a madrinha de quem o irmão Augusto lhe falou, justamente numa noite em que sentia fome. Na viagem, faz amizade com a menina Vera. Brincando juntos, no sítio dela, chegam à “casa”. A “madrinha” não está mas, como Augusto dissera, deixara uma chave esperando pelo afilhado, dentro de uma flor pregada na porta. Na casa, sob o olhar admirado da amiga, todos os desejos de Alexandre são realizados. Mas Vera precisa ir embora e ele a leva de volta. No sítio dela, junta suas coisas para seguir viagem. Quando abre a mala, encontra a mesma chave: “Que legal! Agora vou viajar com a chave da casa no bolso; não vou mais ter problema nenhum!”, diz.
Não?
Parece que Lygia quis transmitir ao leitor o sentimento de poder abrir as portas da vida. O livro foi lançado nos anos 1970, quando a vida nos morros cariocas ainda não sofria tantas ameaças. Havia uma chave imaginada, uma chave a ser buscada. Esta chave, hoje, é apenas ficção? (Duas ou três vezes por semana, tenho caminhado do Catete à Lapa. Passo por muitas crianças drogadas, imundas, eu me desvio delas, me culpo.)

                                 Leia mais sobre o livro na página ao lado!



sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Rio de sonho

Tem um mês que não consigo acesso ao site da Casa Lygia Bojunga. Meu computador não vai mais lá. Estranho, pois pedi para duas pessoas fazerem o teste de seus computadores, e acessaram o site normalmente. Uma chegou a testar várias páginas e encontrou tudo normal. Estranho ainda é o fato de eu me negar a testar o acesso de outro computador. Porque desde então tento me lembrar de uma foto que tem lá, de Lygia aos oito anos. Uma foto onde está vestida para o carnaval, com legenda contando que a fantasia foi criação dela. Queria ver esta foto para inspirar esta crônica. Talvez, porém, segundo as forças ocultas da tecnologia, eu já tenha visto o necessário: sou provavelmente quem mais acessou o endereço. Chega então de adiar, escrevo.
Aos oito anos, a futura escritora era habitante recente do Rio de Janeiro. Mudara-se da gelada Pelotas-RS para a efervescente Copacabana. Em O Rio e eu (1999), aliás, Lygia se refere a um pedaço da vida no Sul. Uma (inventada?) passadeira lhe fala maravilhas sobre o Rio. A descrição da mulher é de tal forma atraente que a menina chega a duvidar que seja verdade. Pouco tempo depois, ainda segundo o mesmo livro, é no sonho de cidade que Lygia passa a morar. Copacabana chegava aos anos 1940, e imagino o que era aquela praia.
Então, na foto que já vi bastante, a menina que se descobria carioca se cobria de uma fantasia própria. Deve ter sido uma folia e tanto. Bem de acordo com a estreia literária da autora, trinta anos depois. Os colegas (1972) é uma trama carioca, com cheiro de praia e alegria de carnaval:
Um cortando e outro costurando os pedaços de pano, a vela do barco e os trapos todos reunidos, pouco a pouco vão aprontando os paletós e as calças de palhaço. E em cada paletó que fica pronto, Latinha vai colando os botões: as bolas de gude e as de pingue-pongue também. Cara-de-pau espalha as margaridas do buquê, que Flor vai salpicando e prendendo nas fantasias com pontarecos ligeiros. Voz de Cristal e Virinha vão fabricando as cinco cartolinhas com as caixas de sapatos vazias e a cartolina conseguida. Enquanto um corta, o outro cola. E depois, cada um da turma pinta na cartola uma coisa que vem na cabeça: um sol, uma saudade, uma casa, uma onda, um avião.[1]
Em 1971, o  Instituto Nacional do Livro realizou um concurso em busca de novos autores de livros para crianças. Os colegas venceu, revelando Lygia vestida de escritora. Uma fantasia relacionada ao trabalho com as mãos, como se sabe a partir de Livro, um encontro (1988). Esta é a primeira narrativa autobiográfica da autora e é também a primeira em que ela se diz “artesã da escrita”. Eis uma fantasia poderosa, origem de outras tantas.               
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[1] NUNES, Lygia Bojunga. Os colegas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, p. 27.