A mulher que mora nos livros

(Recortes de: CÂMARA, Ana Letícia Pires Leal. Para Lygia Bojunga, a mulher que mora nos livros. Tese de Doutorado em Letras / PUC-Rio, 2010. Orientador: Renato Cordeiro Gomes.)

Quinta-feira, 22 de março de 2012

O abraço recebeu o prêmio Adolfo Aizen, da União Brasileira dos Escritores, e foi considerado “Altamente recomendável para o jovem” pela FNLIJ. Este é, contudo, claramente uma novela dirigida a adultos, sem vestígio de literatura juvenil ou infantil. Mesmo assim, foi catalogado como juvenil pela editora Agir, que o lançou com apenas três ilustrações e em preto e branco. Na página 1, a capitular é desenhada com o mesmo motivo das ilustrações da capa e da última página. As três não parecem atraentes para o segmento em questão. Ganhei esta edição da minha mãe, que tinha sido atraída pela capa. Numa livraria grande, chamam “mega”, foi esta capa que chamou a atenção dela: “Achei tão interessante”, disse.  
A extensão do texto é o único elemento que aproxima O abraço do gênero juvenil. Na edição inicial, eram apenas 56 páginas. Agora, são 96, contando com o “Pra você que me lê”, onde você conversa sobre a presença frequente da morte na sua obra e, mais especialmente, em O abraço e Nós três. Afirmando que teve interesse pelo tema desde a infância, você conta que inseria a morte em brincadeiras, como faria mais tarde em livros: a morte virada em personagem. Literatura para adultos, portanto. 
Esses “Pra você que me lê” costumam apontar para diversas histórias suas. Lendo este, lembro-me da narradora de “A troca e a tarefa” que, para se livrar de um ou outro sentimento, o transforma em elemento de ficção. Assim você tem feito com a morte que, neste Abraço e em Nós três, tem papel preponderante. A esses dois títulos você deu o apelido de “par sombrio” por serem livros extremamente tristes. Que não deixam nem uma pontinha de esperança, que terminam sem apontar recomeço. Ao levá-los para a Casa, resolveu por isso caracterizar ambos com a mesma tarja preta, evocando o sinal de luto que marca certos envelopes que levam um comunicado de morte.
Conforme apontei lá atrás, em Nós três ainda havia uma protagonista em torno dos dez anos, o que pode justificar a catalogação como infantojuvenil. Em O abraço não há nem isso. Trata-se de um diálogo entre uma escritora e uma leitora de 19 anos. O ponto de vista é totalmente adulto, portanto. A leitora, Cristina, conta uma história estranhíssima para a escritora. Vou tentar resumir.



Quinta-feira, 08 de março de 2012


Em metáfora que destaca o poder da expressão individual, Lucas passa a sentir-se melhor ao brincar com a massa de modelar. Nela, copia justamente a expressão facial que tanto admira no pai: “Nem pescoço, nem garganta, nem nada doía mais, a Coisa tinha sumido; e o Lucas (meio-espantado-meio-contente) começou a trabalhar a cara que ele tinha acabado de inventar.”[1] Com a máscara sobre o rosto, dorme, sozinho em casa. É acordado pelo pai, que retira a máscara com violência: “O Lucas pulou da cama e pegou o pedaço que tinha caído no chão, puxou o outro pedaço da mão do Pai, juntou um no outro, procurou a Cara na massa. Mas a massa não tinha mais cara”.[2]
Ele tinha perdido o medo de modelar com Lenor, sua professora na escola de artes plásticas. Um dia, resolve dar a ela um bilhete contendo uma declaração de amor, mas pede que ela só abra o envelope quando chegar em casa. Depois da aula, entretanto, flagra seu pai seduzindo a professora. Escuta quando os dois combinam de sair à noite, para jantar. Em casa, à mesa do jantar, pergunta à mãe:  

- Cadê o pai?
- Ele hoje tem um jantar com o diretor-da-companhia.
O Lucas empurrou o prato e ficou pensando como é que era o terraço onde o Pai tinha ido jantar com a Lenor.[3]

A imagem da solidão que não para de crescer é contornada pela sua escrita, que abre um capítulo para a reação de Lucas. Ao empurrar o prato para a frente do corpo, ele volta o olhar para dentro de si e toma o lugar do pai, no jantar com a professora. Então, Lygia, você abre seis parênteses em 12 páginas – para setenta linhas dentro de parênteses, o capítulo tem  131 linhas fora deles. Além disso, dá cinco espaços. Cada parênteses que você abre ou espaço que você dá é mais uma região que se explora, dentro do Lucas. A sucessão de espaços e parênteses vai me levando, num movimento espiralado, para o interior do personagem. Como se um espaço ou parênteses estivesse dentro do outro, cada um dando expressão a um espaço mais fundo.


[1] Seis vezes Lucas. Rio de Janeiro: Agir, 1999. p. 17
[2] Ibid. p. 25
[3] Ibid. p. 67



Sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012


Um livro imperfeito

Na sua obra, a questão do gênero é complicada mesmo. Se eu fosse gerente de livraria, não saberia onde colocar Nós três e mais alguns livros. Em geral os vejo todos juntos, na seção de infantis ou de juvenis. Até na livraria de Santa Teresa, uma vez O Rio e eu estava entre os juvenis (o livro é para adultos e fala bastante do bairro). Uma amiga me contou que foi comprar um livro seu para a filha de oito anos e ficou perdida. Se coloca no lugar dela: como saber qual levar, se todos — adultos, juvenis e infantis — têm a mesma cara?
Os livros das outras editoras com projetos gráficos coloridos, sofisticados e chamativos, pensados para serem escolhidos pelos leitores potenciais. Gente que dá uma passadinha na livraria e compra o que chama a atenção. No mercado editorial em geral, a aparência é cada vez mais trabalhada. Dizem que as vendas de livros se definem principalmente pelo destaque dado a eles nas lojas. Você, no entanto, faz questão de tomar o sentido contrário. Desde que assumiu a edição da própria obra, em 2002, passou a uniformizá-la de um jeito bem simples. (....) Você pode estar dizendo, com seus projetos gráficos semelhantes: 
O gênero é uma determinação de mercado e eu quero uma forma anticomercial para entrar em contato com você que me lê. Se você tem oito ou oitenta anos, se vai ler Os colegas ou Nós três, tanto faz, o que me importa é que seja lida essa minha história de amor pelo livro. Os meus livros têm essa cara que é a cara da casa que eles são pra gente se encontrar, eu e você que me lê. Nesse momento, estou experimentando assim. Não é o ideal, sei que não é, mas do jeito que me dizem pra fazer seria bem menos ideal. Vamos ver como fica depois. Agora estou fazendo assim.


Sábado, 11 de fevereiro de 2012
O corpo e a obra
Essa é a terceira narrativa que você publica na primeira pessoa do singular. Em A bolsa amarela, a protagonista Raquel conta várias histórias, vindo a descobrir sua vocação literária. Em “A troca e a tarefa”, conto de Tchau, a narradora, uma escritora, também trata de seu processo criativo. Já Cláudio, de O meu amigo pintor, não diz que é um escritor mas deixa claro que é quem escreve o que se lê. Quando fala em seu “Amigo Pintor”, por exemplo, explica porque o identifica desta forma: “acho que é melhor escrever o meu amigo com letra maiúscula”, diz.[1]
            Usando assim a primeira pessoa do singular, você evidencia a instância narrativa que adquire peso na sua obra. Uma vez que já te li até o 21o livro, posso voltar a este oitavo, hoje, e ver o quanto de você existe neste pintor que se mata. Está na epígrafe: se você transmite vida ao personagem, passa a existir - mulher que mora nos livros. Já o pintor se suicidou, na visão de Cláudio, por não conseguir dar a tal “vida” aos quadros: 
- Mas você é um bom pintor!
- Não! não, eu não sou. Eu sei muito bem como é que se pinta; eu tenho técnica; eu trabalho e trabalho pra ver se eu dou vida aos meus quadros. Mas não adianta: são telas mortas. - Foi apontando com o pincel: - Olha. Olha! Olha!! não dá pra ver? não dá pra sentir que a minha pintura não tem vida? - E aí ele jogou o pincel na mesa com um jeito meio, sei lá, um jeito desesperado que, francamente, eu nunca tinha visto ele ter.
            Eu fico lembrando dessa cena, e fico pensando uma coisa: será que um artista pode amar tanto o trabalho dele que… deixa eu ver como é que eu explico isso… pode amar tanto o trabalho dele que, se ele acha que o trabalho não tem vida, ele também não quer mais ter?[2]

            Lygia, da forma como você costuma tratar a obra de arte, ela é uma extensão do corpo do artista. Da forma como você fala em seus livros, eles são uma extensão do seu corpo. Aprendi com minha professora Vera, porém, que a literatura surgiu exatamente da cisão entre o corpo e a história contada...[3] Então, parece que, ao escrever, você quer refazer este vínculo e… consegue. Minha professora Vera que me perdoe a afirmação seguinte, mas na minha leitura de você, Lygia, a obra não apenas se vincula ao seu corpo: ela o constrói - livro a livro. A mulher que mora nos livros não tem outro corpo senão este, composto de 22 títulos. É um corpo que paira por aqui enquanto escrevo.




[1] O meu amigo pintor. Rio de Janeiro: Agir, 1987. p. 13
[2] Ibid. p. 36
[3]  “O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance (….) O primeiro grande livro do gênero, Dom Quixote, mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria.” (Benjamin, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1993. p. 201)

Sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A solidão é o que move a escritura
O modo “privado” invadiu todas as esferas na contemporaneidade, inclusive a morte. O espaço da morte é, hoje, privado. A dor causada pela morte de uma pessoa querida, Lygia, pontua a solidão e o desamparo em que a modernidade nos lançou. A gente não tem mais uma igreja onde comungar, uma aldeia onde ouvir nossa própria história já pronta, não. É este justamente o problema que sua obra apresenta muitas vezes e, também, através do sentimento da menina Maria.
            Ela só pode reagir ao que a vida lhe preparou da forma que ela mesma conseguir criar para reagir. Maria não tem uma tradição para copiar e não está inserida num grupo social que lhe dê amparo. Ela mesma terá que construir um amparo para si. É como a bolsa da Raquel, o ovo da Angélica e outros exemplos frequentemente citados nesta carta que te escrevo: a corda de Maria termina por ser um intervalo onde ela pode recriar sua existência – a partir de sua inexorável solidão.
            Lygia, toda sua obra fala de mundos extremamente pessoais, mas isso não quer dizer que seus personagens sejam autocentrados ou egoístas. Ocorre, sim – e isso fica mais claro ainda em Corda bamba – que eles se deparem com situações de vida que não lhes deixam alternativa senão o recolhimento passageiro.  Algumas vezes, porém, deixei-me confundir por você. A partir de 1988, quando passou a publicar textos memorialísticos, seu discurso se autoqualifica como impregnado da tradição oral e, logo, vinculado ao artesanato (ver nota abaixo). Em consequência, aquilo que Benjamin fala sobre o “narrador” eu aplicava grosseiramente a você.
            Na verdade, minha confusão era um pouco mais grave… Eu confundia, também, a marca do artesão de que Benjamin fala com a assinatura do autor moderno. Identificava, assim, a experiência possível de ser transmitida pelo narrador referido por Benjamin com a experiência particular de personagens como Maria. Fui salva, ainda bem, pela minha professora Vera. Ela só faltou me sacudir durante o Exame de Qualificação, para ver se eu acordava do sonho de te auratizar… Deixei passar um tempo para reler Benjamin e finalmente entender que:

Nota: Minha tese foi redigida ao longo de 2009. Hoje, penso que o texto de Lygia não relaciona tradição oral e artesanato dessa forma. Ela se diz uma contadora de histórias e uma artesã, mas quem vincula sua obra ao “narrador” benjaminiano é parte da crítica.



Sexta-feira, 16 de setembro de 2011


2009

Hoje é 30 de maio. Faz poucos dias, te mandei um e-mail contando da minha satisfação com as fotos da “Festa Literária de Santa Teresa”, a Flist, no meio do mês. Organizada pelo Centro Educacional Anísio Teixeira (Ceat), colégio particular localizado no bairro onde você ainda mora, a primeira edição do evento escolheu homenagear a sua obra e você fez a conferência de abertura. Entre outras frases, escrevi: “É tão bom ver que sua luz ainda brilha e que apesar de tudo ainda há crianças que te leem”.

Disse isso porque leio a chave que Alexandre descobre como a chave que você tem oferecido, ao longo de todos esses anos, para que cada leitor encontre as ideias pelas quais pretende lutar, num caminho que levará toda a vida. Ele vai ter trabalho, pois a chave não resolve nada – confere a seu leitor o poder de resolver. Quem entra na sua casa, Lygia (o livro onde você mantém uma chave na porta), encontra nela o jeito de exercitar a capacidade criativa e ser capaz de fazer escolhas. Por isso, talvez essas crianças, que te leem hoje, cresçam a ponto de ter as ideias que nos fazem tanta falta. Talvez essas crianças que te leem hoje, Lygia, possam finalmente salvar Santa Teresa, o Rio e o mundo. Tomara! Então será possível recomeçar.





Sexta-feira, 02 de dezembro de 2011

A idade do leitor
Neste, porém, que é seu único livro de contos, desponta uma característica que vai permanecer na sua obra futura chegando, até mesmo, a contaminar minha leitura de seus livros anteriores: a indeterminação da faixa etária do leitor implícito. O livro foi lançado em 1984 como infantojuvenil. Logo mereceu dois prêmios relativos ao gênero: no Brasil, “O melhor para o jovem” (FNLIJ, 1985) e, na Alemanha, entrou para a “Seleção dos melhores livros da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique” (1987). Recentemente, sua própria editora manteve a classificação, mas inseriu o “Pra você que me lê”, texto que ainda não apresentou características de literatura infantil ou juvenil.
(....)
Tenho um casal de amigos que adora Tchau e considera os contos bastante pesados. Ela é psicanalista e ele, que é cineasta, chegou a te pedir os direitos para adaptar o conto que dá nome ao livro, mas você negou. Foi este mesmo conto que impressionou minha cunhada Dani. Quando leu, estávamos hospedadas no mesmo apartamento e me lembro de sua fisionomia alterada. Sentiu até certa raiva de você, por tanta violência na vida da Rebeca. É, Lygia, esse teu livro é forte!
Seus três leitores mencionados têm entre 30 e 40 anos. Você costuma mesmo dizer que não escreve pensando na faixa etária de quem vai te ler. É como disse a Laura Sandroni em crítica, na época do lançamento: “Tchau é livro para ser lido por todos os que apreciam a literatura e reconhecem, sem preconceitos, uma obra de arte.”[1]







[1] SANDRONI, Laura. Ao longo do caminho: seleção de resenhas publicadas no jornal O Globo, 1975-2002. São Paulo: Moderna, 2003. p. 154.


Sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A casa da madrinha (1978)

"Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar."
(Monteiro Lobato)
               
Vim para Lisboa sem a edição atual de A casa da madrinha. Ainda uso um exemplar impresso há trinta anos, quando seus livros eram ricamente ilustrados e tinham letras grandes. Em outubro, de volta ao Rio, vou observar as diferenças com detalhes. De antemão, posso dizer que a forma antiga era melhor para dar de presente a uma criança. Hoje, seus projetos não têm atrativo para os pequenos. Cada edição tem cara de não-estou-me-importando-se-vendo-ou-não, o que combina bastante com a sua imagem, que mora nos livros.
A Lygia que eu leio definitivamente não contrataria o designer premiado. Sua construção, ou sua autoficção, é motivada pela ficção do livro. De certa forma, a sua história se dá como um grande romance onde o livro vive independentemente do mercado livreiro. Você apresenta o objeto-livro não como um produto, mas como um meio de levar a sua mensagem aos leitores. Assim, faz todo sentido que seus livros mantenham traços de carta íntima. O “Pra você…” é a celebração de um jeito de se comunicar que você começou em Livro, um encontro, e radicalizou quando passou à coordenação editorial de sua obra.
Por tudo isso, Lygia, decidi te escrever este livro assim. É o meu jeito de te dizer, de te mostrar o meu jeito de te ler. Nessas páginas, registro os passos da minha leitura. Se é crítica, ensaio ou ficção… o problema será de quem for catalogar depois… Se é um texto que cabe no estatuto de tese de doutorado, será função da banca me dizer na Defesa, em março. A minha função, por ora, é escolher como dispor as palavras que te ler me trazem (eu só escrevo o que eu preciso).


Sexta-feira, 04 de novembro de 2011


A partir da história de sucesso de seu primeiro livro, lançado em 1972, apresentei minha proposta de ler sua obra pelo prisma biográfico. Contextualizei o início de sua carreira de escritora, indicando meu lugar de leitora em torno de 1980. Notei que, ao relacionar sua escrita à sua leitura de Monteiro Lobato, passo ao exercício da chamada crítica biográfica, onde
os limites provocados pela leitura de natureza textual, cujo foco se reduz à matéria literária e à sua especificidade, são equacionados em favor do exercício de ficcionalização da crítica, no qual o próprio sujeito teórico se inscreve como ator no discurso e personagem de uma narrativa em construção.[1]

Lygia, você conta que escolheu o quadro “A solitária”, de Edvard Munch, para ilustrar a capa da nova edição de Tchau, por identificar a personagem do quadro com algumas personagens do livro. A moça pintada está de costas e, portanto, pode ser alvo das mais diversas identificações. Eu, ao entrar numa livraria e ver de relance a capa do livro, dei-lhe o seu rosto em jovem, jovem como eu nunca a vi.

É neste olhar ficcionalizante que situo o que te escrevo. A construção ensaística vincula-se a uma escolha autoral da qual não gostaria de escapar. Mais do que ler ou interpretar a obra, escrevo a partir dela. Ao olhar, desencadeio o desdobramento da mulher que mora nos livros. Participo, assim, do processo de construção da personagem que suponho existir na obra em questão.

Termino o primeiro capítulo anunciando a marca recorrente na sua obra que eu leio: o motivo do anonimato como ponto de partida e o exercício da autoficção como estratégia de sobrevivência – na cidade que habitamos. A hipótese é explicada em detalhes a seguir.

Tem uma foto na Caixa amarela, abra!



[1] SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: UFMG, 2007. p. 105






Sexta-feira, 21 de outubro de 2011


Uma história completa
           
(...) Outro elemento que chama atenção é a esperança no futuro de Tobias que, segundo a mãe de Petúnia, é um pé-rapado.[1] Apaixonada, a menina afirma que ele vai ter dinheiro. A oportunidade para uma vida melhor é apontada ainda pelo narrador onipresente (você!) que destaca o gosto do menino pela leitura. Sobretudo, Lygia, o encanto da personagem Petúnia é tal que me lembra o de Raquel. Adaptando o romance para o cinema, eu destacaria mais ainda essa personagem, modificando o enredo aqui e ali.
            Lygia, essa história deve mesmo ter passado na sua cabeça por imagens. Digo isso pela forma como você acompanha o olhar dos personagens. Petúnia e a mãe chegam ao barraco miserável da tia de Tobias, para ver a cama que é uma antiguidade. Elvira fica fascinada pelo móvel, enquanto Petúnia fica fascinada por Tobias. O fascínio de Elvira ainda cresce, principalmente quando vê que o estrado é de palhinha, e Petúnia não botou os óculos nem chegou perto, mas examinava Tobias com o mesmo rigor que Elvira inspecionava a cama[2]. Você acompanha:


Nada escapou da inspeção da Petúnia. Do cabelo encaracolado ao pé na sandália, Petúnia estudou Tobias tão bem estudado, que aprendeu ele de cor. Deu nota dez pra ele. E de ter aprendido ele assim tão depressa, deu dez pra ela também. E de tanto vir pensando há tanto tempo que coisa mais linda era a tal da paixão à primeira vista, foi só Elvira acabar a inspeção e dizer que ficava com a cama, sim, que Petúnia também: deu a inspeção por concluída e se apaixonou pela primeira vez. À primeira vista.[3]

            Você já dá as indicações para o diretor de fotografia! Outra cena que pode ficar bárbara é a saída do casalzinho do Jardim Botânico. Chovera à beça, Petúnia entrou no ônibus, Tobias continuou no ponto esperando, Ela enfiou a cabeça e o braço pela janela. Apontou pro céu: — Tem arco-íris! — gritou.[4]


                 Abra agora a Caixa amarela!





[1] BOJUNGA, Lygia. A cama. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2005. p. 172.
[2] Id. Ibid. pp. 50-52.
[3] Id. Ibid. p. 53.
[4] Id. Ibid. p. 138.




            Sexta-feira, 07 de outubro de 2011





            Os mistérios da leitura

Você recebera uma carta de Lourenço descrevendo uma paisagem vista em sonho. Segundo ele, parecia um cenário de história sua. A paisagem descrita por Lourenço era idêntica a uma recentemente descrita por você, num conto ainda em construção, que não saíra do seu caderno, em Londres: “Larguei a carta: eu estava perplexa”, você comenta.[1] “Um Lourenço que eu mal conhecia, que eu nem sabia se era um adolescente, uma criança, um adulto?”[2]. E pergunta: “O Lourenço era magro? era gordo? era alto? não era?”; “Será que o Lourenço usava óculos? só pra ler?”; “Que idade o Lourenço tinha?”.[3]
Antes de qualquer resposta, bruscamente Lourenço deixa de dar notícias. Intrigada, você aceita um convite para um congresso na Bahia e, no caminho, passa no endereço dele, no Rio. Lourenço, você passa a conhecer, mas o mistério você não desvenda. Ao contrário, quando a vizinha te mostra um desenho da mesma paisagem, você fica ainda mais intrigada.
Tudo se passa, Lygia, como se você perguntasse sobre o efeito da leitura e da leitura dos seus textos. Quanto do autor um leitor absorve? O que é que se lê — o que foi escrito ou o que se quer ler? Um leitor é contaminado pelo modo de pensar do autor? Será que leitor e autor podem ter tanta afinidade a ponto de num determinado momento criarem uma cena em tudo idêntica?
Afirma Ricardo Piglia que “Sempre existe algo de inquietante, ao mesmo tempo estranho e familiar, na imagem concentrada de alguém que lê, uma misteriosa intensidade que a literatura fixou inúmeras vezes. O sujeito se isolou, parece separado do real”.[4] E o que dizer da imagem concentrada de quem escreve? Sem resposta, o mistério da autoria da imagem resulta num conto escrito dentro da história que é contada, no caminho do que sugere Piglia quando afirma ser “o que é um leitor?” a pergunta constituinte da literatura:

Essa pergunta a constitui, não é externa a si mesma, é sua condição de existência. E a resposta a essa pergunta — para benefício de todos nós, leitores imperfeitos porém reais — é um texto: inquietante, singular e sempre diverso.[5]




[1] BOJUNGA, Lygia. Paisagem. Casa Lygia Bojunga, Rio de Janeiro, 1992. p.12.
[2] Id. Ibid. p.15.
[3] Id. Ibid. p.20.
[4] PIGLIA, Ricardo. O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.25.
[5] Id. Ibid. p.25.