quinta-feira, 22 de março de 2012

Estranho demais



Certa vez, procurando mais de vinte citações por diferentes livros de Lygia, fiquei surpresa com minha própria facilidade em encontrá-las. Duas vezes abri na página exata. Outras vezes, sabia em que parte do livro procurar. Assim, uma tarefa que, pensei, levaria dias, levou duas ou três horas. É. Conheço bem esses textos. Tenho a intimidade possível, digamos. Mesmo assim, começo esta crônica sem a mínima ideia de o que escrever sobre O abraço (1995). Acho o livro estranho demais. É a história do estupro de duas crianças, o assassinato de uma delas e, caramba!, o desejo da sobrevivente, Cristina, pelo agressor. Adulta, vai atrás dele, que se tornou palhaço de circo... Tudo isso me cala. Tanto que me impressiona a análise fluente de uma colega.
Luciana Bastos Figueiredo, em sua dissertação de mestrado,   lê a obra em relação com Meu amigo pintor (1987). Segundo ela, a morte, e tudo o que a cerca, conduz as duas narrativas. A diferença fundamental é a forma sombria como a morte aparece em O abraço. Causa-me interesse a análise no contexto da literatura juvenil, coisa que eu jamais pensaria em fazer, porque considerava um erro a catalogação de O abraço como tal. Mas Luciana, que foi orientada pelo escritor e professor Gustavo Bernardo, ilumina aspectos que me põe a pensar coisas novas. Por exemplo, a cena final como punição de Cristina por parte da narradora. Eu não entenderia assim. Na verdade, ainda não entendi O abraço.      
Na minha tese de doutorado,  aliás, limitei-me a apontar o caráter estranho da narrativa, mostrando a repetição do adjetivo estranho e suas variações. Tomei o texto como a narrativa de um sonho da narradora. Sim. Como quando temos um sonho misterioso e contamos para o analista. O sonho é fascinante e todo fragmentado; não entendemos nada, ao mesmo tempo sabendo que faz o maior sentido; na hora de contar, ensaiamos conexões entre as partes... É por aí que tenho lido O abraço: de uma vez, a narradora me mostra o seu avesso sombrio e me leva a encarar o meu – sem que eu esteja preparada.


quinta-feira, 8 de março de 2012

Coisa estranha


6 vezes Lucas (1995) começa com o protagonista, um menino, admirando o pai, que se arruma diante do espelho. A vaidade do homem é evidenciada na descrição de seus gestos. Só tem olhos para o espelho e não quer ouvir o que Lucas quer dizer.
            Lucas tem medo de ficar sozinho em casa. O pai condena o que considera uma covardia, enquanto a mãe não contraria o pai. Ela diz: “Não vamos começar outra vez com isso, não é, meu amor? Você não viu a cara do teu pai no jantar? ele não gostou nadinha de ver você falando de novo que tem medo.”[1] A submissão é compartilhada pelo filho que, uma vez sozinho, vai para a frente do espelho imitar as expressões faciais admiradas no pai. Seu profundo sofrimento logo se evidencia, numa dor difusa que perpassa todo o corpo:
Agora era assim: volta e meia a Coisa doía. Doía na garganta, no pescoço, no dente, e se o Pai dizia, mas afinal! que dor é essa? o Lucas só respondia, não sei, é uma coisa; e se a mãe falava, explica melhor essa coisa, meu filho, ele não explicava, só sabia que ela doía.[2]

Ao longo da história, os pais pioram muito as coisas para Lucas; no fim, porém, a Coisa melhora dentro dele. Laura Sandroni considerou que se tratava do “reencontro de Lygia Bojunga Nunes com o público jovem, mais interessado em ver, na ficção, a confusão dos sentimentos da adolescência do que as questões do processo de criação, tema das últimas obras da autora”.[3] Na mesma linha, em 1996, o livro foi considerado Hors Concours pela comissão julgadora do prêmio “O melhor para o jovem”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).  No ano seguinte, recebeu o Prêmio Jabuti, na categoria Infantil ou Juvenil.  
            Pelas decisões editoriais que Lygia tomaria na década seguinte, porém, fica claro seu desejo de ser lida por quem não se enquadra numa prateleira. Paisagem (1992) tratava exatamente da intervenção de um leitor na obra da protagonista, uma escritora. Mas tematizar a liberdade na leitura não era provocá-la, evidentemente. Assim, eu me pergunto se hoje, dando ao projeto gráfico esse jeito meio sem endereço, Lygia deixa o leitor mais livre.
Livre como Lucas, que cresce ao atinar que não quer mais usar a máscara de menino que gosta de gostar do pai…[4]  Livre como quer ser a escritora que se diz artesã... Tenho comigo a capa coloridíssima que a Agir preparou para 6 vezes Lucas. Ao pôr esta embalagem comercial de lado, Lygia adota outra em que parece acreditar piamente. É como se a máscara de artesã tivesse aderido a seu rosto, sei lá...     

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[1] Ibid. p. 12
[2] Ibid. p. 14
[3] SANDRONI, Laura. Ao longo do caminho. Seleção de resenhas publicadas no jornal O Globo, 1975-2002. São Paulo: Moderna, 2003. p. 271 
[4] “Pensando e pensando uma coisa que ele nunca tinha pensado antes: como é que vai ser? o que que eu vou fazer? como é que eu vou viver outra vez com o meu pai se eu não gosto mais de gostar dele?” (6 vezes Lucas. Rio de Janeiro: Agir, 1999. p. 99)