quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Reler a paisagem

Há mais de dez anos frequento o bairro de Santa Teresa, mas só peguei o bonde meia dúzia de vezes. Meu problema era, uma vez sentada, não ter controle sobre a quantidade de gente que entrava ou se pendurava. A superlotação, as ruas estreitas, veículos na direção contrária, carros nas calçadas, enfim... muitas variáveis para um só motorneiro administrar. Além da insegurança evidente, a irregularidade nos intervalos entre um e outro, forçando quem prefere o bonde a pegar um dos micro-ônibus de trajetos semelhantes. Ao decidir comprar um apartamento, aliás, lamentei que o bonde não funcionasse. É o transporte ideal para aqueles altos, onde eu gostaria de morar, se pudesse contar com ele.
Como contava a narradora da novela Paisagem, de Lygia Bojunga. Tendo saído de Londres para visitar Lourenço em Santa Teresa, ela o convida para jantar, propondo que peguem o bonde.  O detalhe é que não come nada pelo menos desde as três da tarde e, pelo jeito, já passa das oito da noite. Sem mencionar o tamanho da fome, nem o intervalo entre o convite e a subida ao bonde, a narrativa passa à descrição do caminho. Exibe assim uma imagem idealizada do bonde; não importa se é noite ou se houve um temporal:

Descemos Santa Teresa num bonde amarelo; de olho no Rio e de ventinho na cara. França. Vista Alegre. Guimarães. Curvelo. Os Arcos.
                        Ih, Lourenço, gostei demais desse passeio. Valeu.[1]

Lembrei desta passagem num sábado à tarde, quando ia do Largo do França ao Largo do Guimarães. Dessa vez, fiquei tentada a pegar o bonde, pois começava a chover. Mas deixei-o passar direto e continuei a pé. No sábado seguinte, houve o acidente perto do Largo do Curvelo. Dia 27 de agosto, também à tarde, cinco pessoas morreram e 57 ficaram feridas. Quis reler Paisagem.
Sim, a imagem do bonde é idealizada, mas não a da cidade. Lançada em 1992, a novela põe ênfase no contraste entre a beleza natural do Rio de Janeiro e a multiplicação de barracos:

Abri a janela. O céu já ia clareando. Entrou um ar gostoso, trazendo um cheiro de quintal, de jasmim. Me debrucei e fiquei lá um tempão vendo a vista espetacular. Meu olho foi traçando os mil caminhos que eu andei no Rio, os bairros onde eu morei e estudei, onde eu namorei e trabalhei. Volta e meia o meu olho tropeçava numa outra favela que tinha tomado conta de um morro, até quando iam deixar tanto brasileiro vivendo assim? O meu olho fugia pro mar. Mas depois voltava, e lá ia indo de novo nos caminhos que eu tinha andado, e que fizeram do Rio o meu chão verdadeiro.[2]

Adiante, sobre o que observa da mesma janela, a narradora acrescenta: “A noite apagava as feridas, a injustiça de cada favela virava um salpico de luz.”[3]
Uma das camadas do texto é, portanto, o registro de um olhar sobre o Rio de Janeiro. Registro que se desdobra por cinco outras obras da autora – Os colegas (1971), A casa da madrinha (1978), Tchau (1984), A cama (1999) e O Rio e eu (1999). Um convite incessante para reler a paisagem.

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[1] BOJUNGA, Lygia. Paisagem. Rio de Janeiro: Agir, 1992. p. 47.
[2] Id. Ibid. p. 25.
[3] Id. Ibid. p.46.